O Brasão da República na numária nacional

A moeda e os símbolos do poder têm uma longa história em comum, visto que, tradicionalmente, a emissão de moeda era privilégio real e, por conseguinte, estatal. Por isso, quando não tínhamos o retrato de Sua Majestade nas moedas, tínhamos o brasão de armas do reino; exemplos é o que mais há na numária mundial, principalmente naquela anterior ao século XX.

E, quando a moeda traz a representação de um brasão, temos a interseção da numismática com uma arte ou ciência muito tradicional, a heráldica, que regula ou dita regras de desenho e concepção para os brasões. A heráldica ocidental tem origem na Idade Média, nos torneios de justa e nas batalhas, quando se usava o desenho do escudo do cavaleiro para simbolizá-lo. Com o tempo, não apenas os cavaleiros tinham seus escudos — agora já mais uma ideia do que a representação de um objeto real — mas também a nobreza e a realeza. O escudo do rei confundiu-se com o do reino e, eventualmente, passou a ser um símbolo nacional.

E aqui cabe uma precisão: o que geralmente consideramos emblema nacional é o chamado brasão de armas, formado pelo escudo — o elemento central — e vários outros elementos adicionais, como os suportes, muito comuns na nossa heráldica municipal, que são quase sempre os ramos de plantas, e o listel, onde vem declarado o lema do monarca, do país ou do município.

Vão-se os reis e vêm os presidentes. Os regimes republicanos buscaram ressignificar a heráldica, adicionando elementos que lhe são característicos, como, por exemplo, a troca das coroas que encimavam os escudos por barretes frígios, símbolo republicano que vem da época da Revolução Francesa.

Peça de real de a ocho conhecida como colunário; observe a representação do escudo.
1 pfennig da Saxônia

Até o século XVIII, a representação mais comum dos brasões era a reprodução simples dos elementos da composição, como nesse colunário de 1758, em que se vê o leão do Reino de Leão e o castelo que representa Castela, mas não é possível dizer qual a cor do fundo, ou o esmalte como se diz na heráldica, desses elementos. Com a mecanização da cunhagem e maior precisão nas técnicas de gravação, adotou-se um padrão de representação para os esmaltes. Como se vê neste pfennig saxão, do começo da segunda metade do século XIX, o preto, ou sable, é representado pela sobreposição de linhas verticais e horizontais num ângulo de 90 graus, e o amarelo, ou or, é representado pelo pontilhado. Sim: os esmaltes têm nomes diferentes das cores. A representação destes na numária brasileira aparece ainda no final do século XVIII.

A substituição da heráldica monárquica acompanhando os ventos republicanos também ocorreu no Brasil. Uma das primeiras providências do regime instalado em 1889 foi mudar a iconografia do meio circulante metálico que, naquele momento, resumia-se ao retrato do monarca e ao brasão imperial.

O atual brasão de armas nacional, também chamado de brasão da República, foi concebido pelo engenheiro de origem alemã João Pedro Francisco Artur Zauer, mais conhecido como Artur Zauer. Ou mais ou menos conhecido, porque as informações sobre ele são poucas, embora mais detalhes tenham aparecido nos últimos anos. Herr Zauer veio para o Brasil e trabalhou na Tipografia Universal, do Rio, propriedade dos irmãos Laemmert, também alemães. Quando da proclamação da República, ele teve a ideia de algo que poderíamos chamar de “apoteose heráldica” — na minha opinião fantasiosa e exagerada, para não dizer feia, mesmo — e mandou que Luís Gruber, também funcionário da Tipografia, fizesse o desenho, que foi apresentado ao Marechal Deodoro.

Deodoro, que, proclamada a República, tinha uma crise de diverticulite para resolver, pegou o desenho feito por Zauer e Gruber e pensou que seria uma boa ideia usá-lo como brasão nacional. O escudo sozinho, ou seja, a parte azul central, até que é interessante, mas essa estrela toda colorida, com verde, amarelo e vermelho, fora essa parte no fundo, que imita uma irradiação de luz… Um carnaval.

O brasão se tornou oficial no dia 19 de novembro de 1889, com o mesmo decreto que instituiu a bandeira republicana.

Quanto à numária, após 1889, apareceram para substituir a iconografia monárquica uma Mariana, o brasão feito por Zauer e seu… cúmplice e o escudo propriamente dito. 

O escudo sem seus adereços foi usado apenas nas peças de 20 mil-réis de ouro, batida entre 1889 e 1922, nos 1$000 e $500 de prata, de 1889, e nos 20 réis de bronze, batidos entre 1889 e 1912. Uma versão com suportes de ramos de carvalho e oliveira esteve na peça de 2 mil-réis, cujas três eras de emissão — 1891, 1896 e 1897 — formam a chamada série das três cabeças. Algo muito curioso desse escudo em específico é que a borda dele, em vez de trazer as hachuras horizontais, que representam o azul, as traz verticais, que representam o gules, ou vermelho no vocabulário da heráldica.

2$ da série “Três cabeças”

$O brasão de armas foi usado na peça de 10$ de ouro, entre 1889 e 1922; no reverso dos $500, mil e 2 mil-réis de 1912-1913, nos 2 mil-réis do Centenário da Independência; nas três peças da série MCMI, onde aparecia sobre um ramo de oliveira, e, por fim, nos 40 réis de bronze, de 1889 a 1912.

De 1922, o brasão só voltará à numária em 1956, com a série das pequeninas, de cuproalumínio e as peças de alumínio que registram era até 1961. As reproduções do brasão feitas entre 1889 e 1961 seguiam as regras de emulação dos esmaltes com padrões de hachuras e pontos. Por exemplo: os elementos verdes, ou vert, são preenchidos por linhas em 315 graus — se bem que, em várias representações, a hachura tem como base uma linha que vai do meio da base do triângulo à sua ponta, sempre tendo essa guia como 0 grau, o que acaba, digamos, “deformando” a cor. O amarelo, or, com um padrão de pontos; o escudo, azul, azure, é preenchido com hachuras horizontais. A mesma representação aparece, por exemplo, na capa desse passaporte, emitido em 2014, e é o padrão para as reproduções monocromáticas em formulários, e é tal como mostra o anexo nº 8 da lei federal nº 5.700, de 1º de setembro de 1971, que é a representação monocromática oficial.

Depois de um hiato, o brasão volta às moedas em 1985, na terceira família do segundo cruzeiro e na derivada natural, a do cruzado, até 1988. Essa representação, talvez pensada para a cunhagem em aço, não tinha os detalhes heráldicos, que são muito miúdos, e detalhes muito finos poderiam reduzir a vida útil do cunho, já que o aço é um metal menos dúctil que os usados antes. Note-se que todas as peças em que o brasão apareceu são metais mais dúcteis: prata, ouro, bronze, cuproalumínio e alumínio.

O brasão de armas dessa moeda vale-se simplesmente do relevo para destacar os elementos, deixando-nos sem saber quais são os esmaltes. E o mesmo tipo de reprodução aparece no anverso das peças de 25 centavos de real da segunda família, que trazem o retrato do Marechal Deodoro e parte do brasão, que faz fundo à figura histórica. Aliás, um detalhe muito curioso do brasão que aparece parcialmente na peça de 25 centavos é que a faixa de estrelas da parte externa do escudo tem o fundo em alto relevo e as estrelas em baixo relevo, diferente de todas as representações anteriores, que têm o fundo em baixo relevo e as estrelas em alto.