Veja o vídeo.
Ah, os anos 80. Época do Atari, das ombreiras, dos mullets, da redemocratização e dos programas de auditórios ruins. Além da hiperinflação, claro, que vinha galopando desde o final dos anos 70.
E fazendo eco a esse circo de horrores, em 28 de fevereiro de 1986 entrou em vigência o padrão monetário cruzado, como parte de um pacote de estabilização econômica capitaneado pelo então ministro da Fazenda, Dilson Funaro, que acabou sendo uma espécie de Chernobyl econômica, só lembrando o desastre atômico que aconteceu em abril daquele mesmo ano infausto.
O cruzado equivalia a mil cruzeiros de 1970.
Como sequência natural e linear do padrão precedente, o cruzado herdou o meio circulante do cruzeiro, que foi sendo adaptado. As cédulas de 10 mil, 50 mil e 100 mil cruzeiros, que haviam sido lançadas entre 84 e 85, foram remodeladas para 10, 50 e 100 cruzados, sendo as únicas cédulas aproveitadas em uma redenominação com corte de três zeros.
Mas o intuito deste texto é falar sobre o fato de que a série de moedas do cruzado era provisória.
A resolução n. 1.100 do Banco Central, a mesma que criou o cruzado, diz, no seu inciso XI, que as peças serão de:
5 cruzados…………………………………………………..25 mm;
1 cruzado…………………………………………………….23 mm;
50 centavos………………………………………………….21 mm;
20 centavos………………………………………………….19 mm;
10 centavos………………………………………………….17 mm;
1 centavo……………………………………………………..15 mm.
Todas têm um anverso comum, as Armas da República, e no reverso vão mudando apenas os dizeres. Coisa de uma sensaboria absoluta.
As peças metálicas do cruzeiro também foram parcialmente aproveitadas: havia os valores de 100, 200 e 500 cruzeiros, dos quais, inclusive, falamos mais detalhadamente no vídeo que aparece no card. Essas três peças foram convertidas nas peças de 10, 20 e 50 centavos, respectivamente, também sendo as únicas moedas efetivamente alteradas na passagem de um padrão a outro na história da numária brasileira.
Foram criadas, para cima, a de 1 e a de 5 cruzados e, para baixo, a de 1 centavo. Nota-se o espaço regular entre as moedas, de 2 em 2 mm; mas, no meio de 1986, quando as moedas entraram em circulação, apareceu junto uma moeda de 5 centavos, que foi defendida em voto do conselheiro do CMN Fernão Bracher e consta da ata da 465ª sessão do colegiado, em abril de 1986.
Porém, a história começa antes. Em 15 de março de 1985, José Sarney toma posse como presidente da República, em substituição ao general João Batista de Oliveira Figueiredo, o último presidente militar, e no lugar de Tancredo Neves, quem efetivamente havia sido eleito pelo Colégio Eleitoral, mas que, na data, estava oficialmente em tratamento hospitalar.
A assunção de Sarney e de uma nova equipe econômica acabou por mudar os planos para a economia e para a numária. A série planejada em 1984, com as peças de 10, 20, 50, 100 e 200 cruzeiros, jamais veria a luz e, em março de 1985, aprovou-se a cunhagem das peças já citadas de 100, 200 e 500 cruzeiros, meio que uma alteração desse projeto de 1984. Porém, acompanhando a documentação presente na ata da 447ª sessão, de 2 de maio de 85, há mais surpresas.
Na página 271 da ata, há um esquema gráfico indicando que se pensava em duas possibilidades naquele momento: o corte de três zeros, como efetivamente aconteceu, transformando mil cruzeiros em um cruzado, ou o corte de quatro zeros, que transformariam 10 mil cruzeiros em um cruzado.
Um corte de quatro zeros, embora um pouco estranho para o padrão seguido em 1942 e 1967, talvez estivesse até dentro do intuito original. A primeira cotação do dólar americano em cruzados, em 1º de março de 1986, foi de 13,77; se a redenominação tivesse sido de 10.000 para 1, teríamos uma cotação de 1,38.
Outro ponto interessante é que as cédulas e moedas de cruzados — resultado da adaptação do cone preexistente — tinha caráter provisório, como deixa transparecer o voto Diban-86/035, constante na ata da 465ª sessão do Conselho Monetário Nacional, de 4 de abril de 1986.
Esse voto, aprovado, previa quatro etapas na implantação do cruzado:
1ª etapa: 22 de abril de 1986, lançamento de cédulas carimbadas de cruzados, 10, 50 e 100.
2ª etapa: 23 de junho: lançamento das peças metálicas. O cone que conhecemos: 1, 5, 10, 20, 50 centavos e 1 e 5 cruzados.
3ª etapa: 20 de outubro, lançamento de cédulas de cruzados. Denominações: 10, 50 e 100,00 mais a cédula nova de 500 cruzados, aquela do Villa-Lobos. Cabe lembrar que essa cédula era um projeto que a Casa da Moeda tinha para a taxa de 500 mil cruzeiros. O que faz sentido, uma vez que a inflação galopante exigia o lançamento de uma cédula nova em períodos curtos de tempo.
E a etapa que nos interessa e que nunca ocorreu, a quarta etapa, que previa, para janeiro de 1988, o lançamento de uma nova família de cédulas, com características a serem fixadas posteriormente.
Ou seja, e aqui faço destaque para as moedas, eram séries temporárias, apenas para que a CMB pudesse elaborar novos projetos, com novas temáticas. O documento traz ainda que o projeto de uma cédula nova levava até oito meses.
E digamos que isso de um anverso comum para todas as peças, ainda mais com as armas nacionais, tem todo jeito mesmo de uma série temporária. Algo curioso é que na documentação que fala do projeto de 1984, se recomenda a adoção das armas nacionais como elemento. Vale a leitura do documento oficial, que é o voto DIBAN-84/069, do Conselheiro Affonso Celso Pastore., só dos itens 16, 17 e 18. O documento está como anexo da ata da 432ª sessão do CMN, de 1º de agosto de 1984.
“16. As premissas e objetivos de racionalização delineados no mencionado plano conduziram, por outro lado, à seleção de temática que permitisse a escolha de um único elemento, que fosse comum a todos os anversos das novas moedas de Cr$ 10,00, Cr$ 20,00, Cr$ 50,00, Cr$ 100,00 e Cr$ 200,00.
17. Nesse passo, diversos motivos semânticos foram pesquisados e analisados, selecionando-se os que permitissem envolver as novas moedas de nítida e intensa significação da Nação Brasileira e, cumulativamente, projetassem todo um potencial de imediata comunicação com o público.
18. Os projetos se expressam, em consequência, mediante a representação das Armas Nacionais, Símbolo que se afeiçoa plenamente às premissas e objetivos propostos, tendo figurado inúmeras vezes em moedas e cédulas, em épocas várias, como, mais recentemente em 1956 (Cr$ 0,50, Cr$ 1,00 e Cr$ 2,00) e 1965 (Cr$ 1,00, Cr$ 2,00, Cr$ 10,00, Cr$ 20,00 e Cr$ 50,00)”.
Dessa forma o voto DIBAN-84/069 justifica o uso do brasão da República como elemento do anverso comum. O brasão da República lembra, sei lá, uma GRU, lembra burocracia. Embora seja legalmente um símbolo nacional, não parece ter esse apelo todo que o autor do voto quis trazer.
Como se chega a essa solução burocrática e inócua? Remete ao até então pior período econômico possível, ou seja, o final dos anos 50 e começo dos 60. Além das referências errôneas. As armas da República estavam, na verdade, nas pequeninas de bronze de 1956, mas de alumínio entre 1956 e 1961 e em nenhuma de 1965, que tinham trazido uma releitura do mapa do Brasil que esteve no anverso de das peças auxiliares da primeira série do cruzeiro, entre 1942 e 1956, na de 50 cruzeiros, nós tivemos a primeira versão da Tônia.
Logo, com tudo isso, se vê que a série do cruzado, de uma aridez incrível, era uma série provisória. Porém, mal sabíamos que ainda surgiria algo incrivelmente mais feio… como a primeira família do real, em 1994.